sexta-feira, maio 07, 2004

Ponham Os Olhos Neles

Por vezes há dificuldade em exprimir o que sentimos, este artigo do Miguel Sousa Tavares é um pouco daquilo que eu não consegui passar, sem plagiar agradeço-lhe por este pensamento.

Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Sexta-feira, 07 de Maio de 2004

Segundo contou Pinto da Costa, o Rei de Espanha ter-lhe-á perguntado, em
plena tribuna do estádio Riazor, o que se passa em Portugal e com os
portugueses, de quem só chegam, nos tempos que correm, más notícias e um
ambiente de depressão. Talvez Sua Majestade estivesse também preocupada
com os rumores que lhe terão chegado aos ouvidos de algumas recentes
teorias de patriotas portugueses, defendendo a adesão a Espanha, por
exaustão de vontade ou viabilidade nacional. E Juan Carlos estaria já a
imaginar-se Rei de mais uma autonomia - esta com a particulariade de,
como já rezavam as crónicas dos antigos romanos ocupantes da Lusitânia,
"não se governar nem se deixa governar".

O ambiente português vai, de facto, bastante deprimente: se os
governantes não parecem de grande qualidade, os governados tão-pouco.
Sendo que a alternativa aos primeiros não entusiasma ninguém e a
alternativa aos segundos não existe - pelo menos nas gerações que aí
estão. A geração que está no poder ocupa-se durante semanas, como
questão central da vida política, da discussão de saber se o 25 de Abril
(ocorrido, meus senhores, há 30 anos atrás!) foi uma revolução ou uma
evolução - como se isso pudesse mudar o passado ou iluminar com alguma
luz de esperança o presente cinzento em que habitamos. E a geração de
baixo, a tal geração "rasca", ocupa-se de coisas rascas, numa demência
de vacuidade e inutilidade social absolutas. O país está, realmente,
deprimente.

Mas há ilhas, em Portugal, ilhas de qualidade, de iniciativa, de
profissionalismo, de independência real em relação ao Estado e aos seus
favores, ilhas à margem do clientelismo partidário ou do choradinho
nacional. Em diversos sectores da vida portuguesa - na indústria, na
agricultura, nos serviços - existem empresas e indivíduos que são
melhores, infinitamente melhores do que o país que sofrem. Nos últimos
dias, aliás, o PÚBLICO vem publicando uma série de reportagens sobre
algumas delas, onde se prova que a inovação, o gosto pelo risco e a
promoção da qualidade, da competitividade e do profissionalismo existem
por aí espalhadas, solitárias, sem promoção, nem "lobbies" de apoio nem
padrinhos políticos, a competirem em mercados onde a grande maioria das
empresas ou dos trabalhadores portugueses não se atreveria a travar luta
- pelo menos sem a protecção do Estado.

Uma dessas empresas que escapam à mediocridade geral e ao queixume
permanente como forma de vida e de justificação da mediocridade própria
chama-se FC Porto e é uma ilha de qualidade em Portugal.

Eu sei que tudo o que diga sobre o FC Porto é levado à conta de
"facciosismo doentio". Mas vamos a factos: alguém conhece muitos mais
exemplos de sucesso, aqui e além-fronteiras, semelhante a este? Alguém
conhece muitas empresas portuguesas capazes de se bater em todo o
mercado europeu com concorrentes infinitamente mais ricos e poderosos e
vencê-los? Alguém conhece muitos produtos que, nas últimas décadas,
tenham feito conhecer tanto lá fora o nome de Portugal como a marca FC
Porto? E, se já nos habituámos à ideia de que o actual presidente da
Câmara do Porto, em lugar de prestar ao clube a homenagem que a cidade
tanto lhe deve, sofra na pele com os seus sucessos, nunca conseguirei
entender porquê que as grandes empresas do Porto e do Norte persistem em
ignorar as parcerias e oportunidades de colaboração que o clube lhes
proporciona - como fazem tantas grandes empresas por essa Europa fora.

O FC Porto é um "case study" por duas ordens de razões: pelo sucesso que
obtém e pela reacção que esse sucesso gera entre os seus concorrentes
nacionais. As razões do sucesso do FC Porto são antigas, tão antigas já
que isso torna ainda mais incompreensível que a concorrência, em lugar
de se dedicar à inveja e à maledicência, não se dedique a estudá-las e
tentar copiá-las. A primeira razão é um presidente dedicado à sua
empresa a tempo inteiro e que gere um negócio muito particular e, em
certos aspectos, irracional do ponto de vista de gestão, mas que ele
domina e conhece a fundo: não gere aquilo como uma empresa de construção
civil ou um negócio de representação de automóveis. Depois, gere-o, não
por desejo de autopromoção ou acreditação social, mas por genuína paixão
- paixão essa que sempre soube transmitir, de cima para baixo, e que
explica aquele mistério aparentemente incompreensível de tantos que
falham noutros lados ali triunfarem. No FC Porto, todos sentem a
obrigação de lutar com paixão e total dedicação pelo clube que lhes paga
e com respeito pelos adeptos, que são a razão de ser de tudo aquilo. Um
segredo simples, que qualquer empresa bem sucedida conhece:
profissionalismo e dedicação à empresa, respeito pelos accionistas.

Têm passado pelo FC Porto das últimas duas décadas "gerações" de
treinadores, jogadores, técnicos de diversas áreas, dirigentes,
consultores, empresas de auditoria. Sem excepção, todos acabam a dizer
que ali nada é deixado ao acaso, nada se faz de improviso, nada se
conquista com pouco trabalho e muita vaidade. O "espírito da casa", que
sempre tem passado de jogador em jogador, de técnico em técnico, é a
outra razão de sucesso. Quem chega sente que acabou de entrar numa
empresa altamente profissionalizada, onde nada falta de condições de
trabalho, mas onde também o espírito de família, de clube, a tal
"mística" que demora gerações a formar, são parte integrante dos
processos de trabalho. Assim sendo, não é difícil que todos se entreguem
até ao limite das suas capacidades, que sintam a obrigação de retribuir
- mesmo que ali estejam apenas de passagem para mais altos voos. Porque,
mesmo então, eles sabem que é o clube que lhes pode dar, em troca, a
projecção para esses voos. Um só exemplo deste espírito de que falo:
todos viram o Derlei jogar na Corunha um jogo inteiro de esforço até ao
limite, muito embora ainda só tivesse, para trás, uma hora de jogo nas
últimas semanas, depois de quatro meses de recuperação da mais grave
doença profissional que pode acontecer a um futebolista: a rotura dos
ligamentos cruzados do joelho. Mas, quando ele estava na cama do
hospital, à espera de ser operado e sem saber se o resultado da operação
lhe permitiria voltar a jogar ao mais alto nível, quando vivia o mais
angustiante momento da sua carreira profissional, Pinto da Costa foi
visitá-lo e trazia para ele assinar, e nas condições que o jogador tinha
pedido antes, a prorrogação do seu contrato.

Para além de Pinto da Costa e da organização interna que ele soube
montar, é de elementar justiça reconhecer também que os êxitos destes
dois últimos anos se devem também e decisivamente a José Mourinho e à
equipa que ele formou. Mourinho não teria triunfado desta maneira sem a
organização que encontrou, mas de nada serve um excelente clube se o
treinador não presta. E, nos breves anos que leva como treinador
principal em Portugal, ele mostrou que estava a anos-luz de todos os
seus compatriotas - em capacidade de treino, de preparação, de
liderança, de inovação de métodos e de cultura. Também ele é um caso
excepcional de profissionalismo entre nós: preparou-se para triunfar,
estudou e estagiou quando tinha de o fazer, triunfou em Portugal e logo
se preparou para levantar voo para onde os horizontes sejam mais largos
ou o desafio ainda mais estimulante. Pouco habituados a ver tal coisa,
os medíocres chamaram-lhe ambicioso, como se isso fosse um defeito.
Chegou, viu e venceu e hoje tem a Europa a seus pés. Infelizmente,
parece mesmo que se vai embora, mas deixará seguramente raízes e escola
e é certo que o FC Porto continuará para além dele, como já antes, a ser
o melhor clube desportivo português.

Estas são algumas, porventura as principais, razões do sucesso de um
clube que acaba de chegar à final da mais importante competição de
clubes do mundo e onde tinha à partida e teoricamente uns 30
concorrentes que lhe eram superiores - pelo menos em orçamento e
"vedetas". Ora, este clube, que é hoje, como o foi o Benfica dos anos
60, um dos raros motivos de orgulho e de afirmação de Portugal no mundo,
é odiado por toda a concorrência interna e desprezado por 60 por cento a
70 por cento dos portugueses. Porque não conseguem imitá-lo, não
conseguem vencê-lo, não conseguem que os factos e os resultados
confirmem as suas constantes calúnias sobre ele, e, no fim, não
conseguem evitar uma inveja que é verdadeiramente característica dos
portugueses. E, quanto mais assim reagem, mais asneiras e precipitações
cometem e mais o FC Porto vai acumulando vitórias (e não apenas no
futebol, mas em todas as modalidades profissionais) e mais se vai
afastando para outra galáxia onde não chegam as vozes de burro.

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